terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

ENTRUDO


Coimbra 17 de Fevereirode 1953 - Entrudo. Um dreno social, que apesar de contrariado vai funcionando. Quando perla manhã fazia a visita quotidiana às livrarias, a primeira coisa que vi foi um sujeito, habitualmente pacato, eu guiava o seu automóvel ostentando uns enormes bigodes postiços. E gostei que aquele pobre cidadão recalcado tivesse a oportunidade de uma façanha de que não seria capaz noutra ocasião.
Mora dentro de nós um bobo açaimado. Um infeliz corcunda, grotesco, andrógino, que o espartilho das convenções obriga a seguir direito elegante, másculo, sob pena de descrédito e de prisão. Mas como tudo tem seus limites, até o fingimento, o diabo, em boa hora, apiedou-se de nós. E deu-nos o Carnaval este alivio, este feriado moral, esta inversão dos códigos. A grande maioria da humanidade, contudo, não consegue esperar pelo dia da licença. Sem poder suportar aos ombros o carrego de doze meses de virtudes obrigatórias, vai-se disfarçando pelo ano adiante com as variadas mascaras que as circunstancias permitem. E temos a multiplicidade de dominós conhecidos. De toga, de farda, de capa e batina, de borla e capelo, de sobrepliz ou de bata, o homem sente-se protegido por uma cobertura que lhe esconde a solidão e o realça na corporação. Que o desindividualiza, em suma. E eis-nos diariamente numa representação consentida, obrigatória até, caracterizados pela mão hábil e previdente das próprias instituições.

Miguel Torga, Diário VI in 3ª Ed Coimbra, 172
Imagem- Carnaval de Lazarim

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